A liberdade de expressão, um dos pilares da ordem democrática brasileira, é sagrada e irrenunciável, conforme preconizado no artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal de 1988.
Ela se traduz na faculdade de qualquer indivíduo manifestar livremente seus pensamentos, ideias, críticas e crenças, sem que para isso necessite de prévia censura. Essa garantia constitucional é fundamental para a formação da opinião pública, o debate plural e a própria fiscalização dos atos do poder.
Contudo, nenhum direito é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro. A liberdade de expressão encontra suas barreiras na proteção de outros direitos e garantias fundamentais, também previstos na Constituição. O inciso X do mesmo artigo 5º resguarda a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, estabelecendo um limite inerente ao exercício da liberdade de expressão. Ademais, a própria Constituição veda o anonimato (art. 5º, IV), reafirmando que a responsabilidade pela manifestação é um corolário da liberdade, o que permite a responsabilização de quem abusa desse direito.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem consolidado o entendimento de que a liberdade de expressão não pode ser utilizada como um salvo-conduto para a prática de ilícitos, especialmente aqueles que atentam contra a dignidade humana, a igualdade, a honra e a não discriminação. Quando a manifestação transborda para o campo da ofensa, da discriminação, da incitação à violência ou da prática de crimes previstos na legislação penal, ela perde a proteção constitucional e adquire a natureza de abuso de direito, passível de sanção.
A Configuração de Crimes pela Expressão no Direito Penal Brasileiro
O Direito Penal brasileiro tipifica diversas condutas que, embora exteriorizadas por meio da fala, escrita, gestos ou outras formas de comunicação, são consideradas criminosas, marcando o ponto em que a liberdade de expressão cede lugar à ilicitude. Dentre os exemplos mais relevantes, merecem destaque:
- Crimes contra a Honra (Arts. 138, 139 e 140 do Código Penal): A calúnia (imputar falsamente fato definido como crime), a difamação (imputar fato ofensivo à reputação) e a injúria (ofender a dignidade ou o decoro) configuram o desvirtuamento da liberdade de expressão para o ataque pessoal, resultando em lesão à honra alheia.
- Crimes de Racismo e Discriminação (Lei nº 7.716/89 e art. 140, §3º, do Código Penal – injúria racial, agora equiparada a racismo pela Lei nº 14.532/23): Condutas que incitam ou praticam a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, ou que injuriam a dignidade ou decoro utilizando elementos referentes a raça, cor, etnia ou religião, são expressamente criminalizadas. Manifestações que propagam ódio e intolerância baseados nessas características são intoleráveis e puníveis.
- Incitação ao Crime (Art. 286 do Código Penal): O ato de incitar, publicamente, a prática de crime. A liberdade de expressão não ampara discursos que visam persuadir pessoas a cometerem ilícitos penais.
- Apologia ao Crime ou a Criminoso (Art. 287 do Código Penal): Punir quem faz, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Exaltar condutas ilícitas ou seus perpetradores desvirtua o propósito da liberdade de expressão.
- Discurso de Ódio (Hate Speech): Embora não seja um tipo penal autônomo, o discurso de ódio é frequentemente enquadrado nos crimes acima mencionados, especialmente aqueles relacionados a racismo, discriminação e incitação à violência, quando a manifestação visa a denegrir, humilhar ou promover a violência contra grupos minoritários ou vulneráveis.
A Condenação à Prisão do Humorista Léo Lins: A Reafirmação dos Limites Constitucionais
A condenação do humorista Léo Lins a 8 anos, 3 meses e 9 dias de prisão em regime inicial fechado, divulgada em 03 de junho de 2025, por incitar preconceito e discriminação em seu show de stand-up comedy, conforme amplamente noticiado, representa um marco significativo na delineação dos limites da liberdade de expressão no contexto artístico e humorístico brasileiro. A sentença, proferida pela 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, também fixou uma indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 303.600,00 e multa equivalente a 1.170 salários mínimos da época.
A decisão judicial baseou-se na análise de que as piadas e comentários proferidos por Léo Lins, sob o pretexto do humor, extrapolaram os limites da crítica e do sarcasmo para atingir a dignidade e a honra de grupos minoritários e vulneráveis, como pessoas com deficiência, idosos, e vítimas de tragédias. A juíza responsável pela sentença entendeu que o conteúdo veiculado não se tratava de mera manifestação artística, mas sim de um instrumento de propagação de discurso de ódio, que incita o preconceito, a discriminação e o escárnio.
A argumentação da defesa do humorista, que alegava tratar-se de um personagem e que o humor visa apenas proporcionar risos sem dolo, não foi acolhida. A Justiça entendeu que a intenção de discriminar, mesmo que travestida de humor, é suficiente para a configuração do crime, independentemente de um resultado específico ou dano material imediato. O cerne da questão reside na lesão aos valores e direitos fundamentais da pessoa humana, que não podem ser vilipendiados sob o manto da liberdade de expressão.
É imperativo frisar que esta condenação não se configura como uma “criminalização do humor” ou uma restrição à liberdade artística em si. Pelo contrário, ela reitera o princípio de que a liberdade de expressão, em todas as suas formas, incluindo o humor, deve ser exercida em conformidade com o respeito à dignidade humana e aos direitos dos demais. O humor, embora tenha um papel social relevante na crítica e na desconstrução de dogmas, não pode ser um vetor para a discriminação, o preconceito ou a incitação à violência.
A sentença proferida contra Léo Lins, embora passível de recurso, como já anunciado por sua defesa, reforça a tese de que a linha divisória entre a liberdade de expressão e o abuso de direito é cruzada quando a manifestação, por seu conteúdo discriminatório e potencialmente lesivo, transgride os direitos fundamentais de terceiros e se amolda a um tipo penal. A condenação à prisão, neste caso, serve como um poderoso lembrete de que a responsabilidade é o preço da liberdade, e que a Lei brasileira está aparelhada para coibir os excessos que se tornam crime, protegendo a coesão social e os direitos de todos os cidadãos.
Fonte: AÇÃO PENAL – PROCEDIMENTO ORDINÁRIO (283) Nº 5003889-93.2024.4.03.6181 / 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo
Por Zahir Marra Jorge