O Direito de Família no Brasil está em constante evolução para acompanhar as mudanças sociais e as novas configurações familiares. Nesse cenário, a multiparentalidade se destaca como um tema crucial, consolidando a ideia de que os laços de afeto podem se sobrepor ou coexistir com os vínculos biológicos na formação da filiação.
A ESSÊNCIA DA MULTIPARENTALIDADE: AFETO ACIMA DE TUDO
Historicamente, o Direito de Família priorizava a filiação biológica. No entanto, com a evolução da sociedade e a valorização do afeto, os tribunais brasileiros, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), passaram a reconhecer a socioafetividade como um pilar fundamental da família.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, § 6º, já equiparava a filiação, proibindo qualquer discriminação. Embora não mencione a multiparentalidade de forma expressa, a interpretação da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) abriu caminho para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva.
A mudança definitiva veio com o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 898.060/SC pelo STF em 2016. Essa decisão histórica estabeleceu que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento da paternidade biológica, e vice-versa, com os efeitos jurídicos próprios”. Assim, a dupla ou multiparentalidade foi consagrada, baseada na dignidade da pessoa humana e no melhor interesse da criança e do adolescente.
COMO A MULTIPARENTALIDADE É RECONHECIDA?
O reconhecimento da multiparentalidade pode ocorrer de duas formas:
- Via Judicial: Geralmente, inicia-se com uma ação de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva. Nesses casos, busca-se comprovar o vínculo de afeto, a posse de estado de filho (tratamento como filho, reconhecimento social, uso do nome, etc.) e a estabilidade da relação. Comprovado o vínculo, o juiz determina a inclusão do nome do genitor socioafetivo no registro civil, sem excluir o genitor biológico, se já estiver registrado.
- Via Extrajudicial: A partir de 2017, por meio de provimento da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), é possível reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva diretamente em cartórios de registro civil. Para isso, o filho deve ter mais de 12 anos e consentir com o reconhecimento. Os pais biológicos também devem concordar, se presentes. Se o filho for menor de 12 anos ou na ausência de consentimento dos pais biológicos, a via judicial ainda é necessária.
É importante destacar que o reconhecimento da socioafetividade em cartório é simplificado, mas exige a manifestação expressa da vontade das partes envolvidas e, em alguns casos, a avaliação do Ministério Público para garantir o melhor interesse do menor.
EFEITOS JURÍDICOS DA MULTIPARENTALIDADE
Uma vez reconhecida, a multiparentalidade gera todos os efeitos jurídicos da filiação, sem hierarquia entre os vínculos. Isso significa que o indivíduo terá direitos e deveres em relação a todos os seus genitores, incluindo:
- Direito ao nome: Possibilidade de incluir os sobrenomes de todos os pais em seu registro civil.
- Direito a alimentos: O dever de prestar alimentos (pensão alimentícia) passa a ser compartilhado entre todos os genitores, de forma solidária e proporcional às suas capacidades financeiras.
- Direitos sucessórios: O filho terá direito à herança de todos os seus genitores, sem distinção, conforme as regras do Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
- Deveres recíprocos: Implicações nas obrigações de cuidado, assistência e convivência familiar, além de deveres alimentares dos filhos para com os pais na velhice ou necessidade.
A multiparentalidade, portanto, não apenas formaliza um laço de afeto já existente, mas também assegura a plena proteção jurídica de todos os envolvidos, garantindo segurança e estabilidade às relações familiares.
A MULTIPARENTALIDADE E O FUTURO DO DIREITO DE FAMÍLIA
A multiparentalidade representa um avanço significativo no Direito de Família brasileiro, ao colocar o afeto como o principal elo de constituição familiar. Ela demonstra a capacidade do Direito de se adaptar às realidades sociais, reconhecendo que a família é um espaço de cuidado, apoio e desenvolvimento humano, independentemente de sua formação.
Ao romper com o paradigma exclusivamente biológico, a legislação e a jurisprudência brasileiras mostram uma compreensão mais ampla e inclusiva do conceito de família, priorizando o bem-estar e a felicidade dos indivíduos. No entanto, é essencial que os profissionais do Direito e a sociedade continuem a debater e a aprimorar os mecanismos de reconhecimento e proteção dessas novas configurações familiares, garantindo que o amor, em suas múltiplas formas, encontre sempre respaldo e segurança jurídica.